A Patagonia de Yvon Chouinard
Os acontecimentos recentes relacionados à pandemia trouxeram reflexões e movimentos em diversas dimensões. Pessoas repensam suas relações com o outro, ou como serão suas carreiras daqui por diante. Organizações são desafiadas em novas formas de liderança. Muitas vezes na busca pela adaptação digital imposta pelas circunstâncias, buscam entender mais profundamente suas verdadeiras entregas de valor à sociedade. Uma retomada às essências. Para muitos, a chance para um recomeço mais autêntico.
As organizações estão diante da oportunidade de praticar (ou comprovar) o que é conhecido como “Walk the Talk”. Que significa diminuir a distância entre o que se fala e o que se faz. Praticar efetivamente o que se prega em termos de propósito e causas. Muitos acreditam que talvez hoje seja o momento ideal de resgatar, aprofundar e fazer valer valores à pessoas, sociedade ou meio ambiente.
Muito antes da pandemia, porém, surgiu um magnífico exemplo de “Walk the Talk”. Uma referência que há décadas vem se consolidando como um modelo de coerência e aproximação entre discurso e prática. Trata-se de Yvon Chouinard, fundador da Patagonia.
Aos 81 anos de idade e com a bagagem de uma longa jornada de transformação e impacto, com pitadas de rebeldia e bom humor, Yvon Chouinard diz que a vida é muito mais fácil se você violar as regras. Pois se você inventa o seu próprio jogo, tem mais chances de se tornar o vencedor.
Nascido em 1938, Yvon é um consagrado alpinista americano que aos 26 anos de idade foi o primeiro a escalar a via “Muir Wall”, em Yosemite. Surfista desbravador de ondas virgens no Pacífico e canoísta destemido em rios revoltos, tornou-se ambientalista e empresário bilionário da indústria outdoor.
Fundou em 1973 sua empresa, Patagonia. Uma marca de roupas e equipamentos reconhecida por atuar em modelos fora dos padrões do mercado. E por sua postura de impacto positivo no mundo. Desde 1985, a Patagônia devolve 1% de suas vendas à causas ambientais. Detalhe importante: As contribuições são feitas independentemente das transações serem lucrativas ou não. Um compromisso real com seu propósito maior.
“A verdade é que eu nunca quis ser um empresário.”
Yvon Chouinard foi uma das atrações do Global Summit 2019, ocorrido em Portland. Sua figura carismática e de boa energia, foi ovacionada pela plateia durante uma entrevista feita à Kate Williams. Kate é CEO da “1% For the Planet”, entidade fundada por Yvon, cuja missão é convidar outras empresas, à exemplo da Patagonia, a também financiarem iniciativas ambientais. Sempre através da devolução de 1% das vendas.
Quando perguntado sobre suas medidas ou decisões fundamentais para o sucesso de sua organização, Yvon desconcerta Kate respondendo que o segredo do sucesso de seu grupo é que, na verdade, ele nunca quis ser um empresário.
Desde muito jovem, Yvon foi atraído pela natureza. Quando criança se apaixonou pelos falcões. A arte da falcoaria o levou às escaladas para visitar os ninhos dos pássaros. Isso o levou a se tornar um exímio alpinista. Escalou montes nos cinco continentes, inclusive Antártida. No início de 1970 suas paixões autênticas o levaram a desenvolver seus próprios equipamentos de alpinismo. Seu objetivo como ferreiro era desenvolver grampos que não danificassem as rochas tanto quanto os modelos tradicionais. O passo seguinte foi, despretensiosamente e sem pensar em aspectos financeiros, produzir camisas para uso pessoal em suas escaladas. Com botões de borracha e super resistentes caíram no gosto dos montanhistas e Yvon viu aí uma forma de manter sua paixão.
“Estamos no negócio de proteger o planeta.”
Yvon mostra que sabe exatamente qual sua posição dentro de um contexto maior. Seja como indivíduo, seja como empresário. Diz que enquanto muitos se sentem acima da natureza, ele se considera parte dela. Como já esteve em contato profundo com do meio ambiente por muitas vezes, percebe e sofre o impacto da sua degradação. Diz que fazemos parte da natureza e à medida que a destruímos, destruímos também a nós mesmos. Quando indagado sobre suas atitudes altruístas, Yvon é categórico: “Isso não é filantropia, é um aluguel que devemos pagar por morar em nosso planeta.”
No entanto, a grande descoberta de sua nova ética ambiental veio quase por acaso. Descobriu involuntariamente que o formol utilizado no processamento de algodão de sua produção poderia intoxicar seus funcionários. Ao invés de somente ajustar o processo para proteger seus colaboradores, Yvon decidiu que não venderia roupas com este tipo veneno para as pessoas. Desde então rompeu os padrões de sua indústria e promoveu uma “limpeza” em toda a sua cadeia de suprimentos. A faxina resultou em produtos mais caros. Mas seus clientes passaram a valorizar sua atitude, que representava um preocupação da marca com o público. Yvon passou então a usar formalmente sua organização como ferramenta de defesa das pessoas e também do planeta.
“Don’t Buy This Jacket”
Da visão holística, com entendimentos amplos sobre a grande complexidade que nos cerca, a construção da Patagonia teve forte influência do Industrial Design, em contraponto ao Fashion Design predominante na indústria têxtil. Desde sempre seus produtos foram projetados para serem funcionais, duráveis e, principalmente, atenderem a necessidades e segurança de seus usuários.
A base no design industrial e a forte visão sistêmica da organização trazem ainda outras características marcantes da Patagonia. Na contramão do mercado de massa, a empresa preconiza a máxima simplicidade, redução extrema do consumo, o reuso e a reciclagem. Oferece reparos grátis em suas peças para se evitar novas compras.
Embora gaste muito pouco em publicidade, a empresa ficou conhecida por, certa vez, publicar em uma página inteira no New York Times os dizeres: “Don’t Buy This Jacket” (“Não compre este casaco”). Num efeito incalculado (ou não), as vendas aumentaram entre 25% e 30% após a publicação do anúncio.
Despropositado ou não, este resultado mostra que é possível fazer negócios através de uma nova lógica. Com foco nas pessoas, na qualidade e com uma visão mais responsável em relação a consumo.
“Tive apenas que fazer o que era certo.”
Como de se esperar, a Patagonia vem demonstrando uma inquietação ainda mais forte em relação às mudanças climáticas. Durante a conversa no Global Summit 2019, Yvon Chouinard cita a frase do ambientalista David Brower – “Não há negócios a serem feitos num planeta morto” – se referindo à sua preocupação com a atual agenda ambiental de líderes e governantes. E por isso, num processo de adaptação constante, recentemente a empresa mudou sua declaração de Missão. Identificou que a declaração anterior não era o suficiente aderente às gravíssimas questões do aquecimento global. Simplificou a mensagem, orientando-a diretamente à preservação do planeta e deu mais poderes a seus colaboradores que se guiam por este propósito.
Sempre no caminho de mitigar os desafios climáticos, Yvon mostra muita profundidade estratégica. Traz o foco para a luta por uma agricultura mais sustentável. Diz que seria possível neutralizar toda a pegada de carbono através de um cultivo mais bem feito e vem trabalhando num Certificado de Agricultura Orgânica Regenerativa.
Traz também muita atenção às questões político-ideológicas. Num embate franco com Donald Trump, busca declaradamente a mudança das políticas vigentes. Lembra de quando quase sofreu um boicote orquestrado pelo atual presidente norte-americano. Foi acusado por produzir seus produtos na Ásia com suposto envolvimento com trabalho e exploração infantil. Mais uma vez, numa surpresa do mercado que entendeu o viés político da acusação, no dia do anúncio ao boicote as vendas da Patagônia cresceram 600%.
Yvon pode ser considerado destemido por lutar contra inimigos tão poderosos. Mas quando questionado sobre as decisões ousadas que teve que tomar ao longo de sua trajetória, humildemente nega o título de corajoso. Diz que não precisou tomar medidas arrojadas. Teve apenas que fazer o que era certo.
Num momento de reinvenção em muitos campos de nossas vidas, as contundentes atitudes e inspiradoras falas de Yvon Chouinard refrescam nossas referências para a construção de novos futuros. O incomum posicionamento da Patagonia abre novos horizontes para que organizações, líderes e indivíduos repensem seus valores e suas verdadeiras funções na economia, na sociedade e no mundo.
Foto destaque: Newsbeezer
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